As células HeLa servem de base para incontáveis pesquisas científicas ao redor do mundo. Graças a elas, cientistas tiveram uma base para desenvolver, por exemplo, a vacina contra a poliomelite e o HPV, bem como criar remédios para combater o câncer, a aids, o mal de Parkinson e até uma simples gripe. Já foram levadas a missões espaciais para ajudar a prever como o corpo humano reagiria à gravidade zero e utilizadas em testes de bombas atômicas. Ainda no campo dos experimentos, essas células servem para que a indústria de cosméticos analise parte dos efeitos colaterais que novos produtos podem causar. Ou seja, não é exagero afirmar que direta ou indiretamente as células HeLa influenciam a vida de boa parte dos seres humanos.
HeLa vem de Henrietta Lacks, norte-americana que morreu no dia 4 de outubro de 1951, há 66 anos. Negra, lavradora e mãe de cinco filhos, Henrietta estava com 30 anos quando descobriu que tinha câncer no colo do útero. A doença não demoraria para se alastrar por todo seu corpo e dar cabo de sua existência. No entanto, graças a uma atitude eticamente questionável dos médicos que lhe assistiam, de certa forma parte de Henrietta continua a viver.
Um naco do colo do útero de Henrietta foi retirado sem seu consentimento. Essa amostra foi parar nas mãos do pesquisador George Gey, que ficou surpreso ao notar que as células problemáticas da moça continuavam a se reproduzir mesmo fora do corpo de origem. Cultivadas em ambientes adequados para tal, até hoje aquele pequeno pedaço extraído de Henrietta continua a se multiplicar e a servir cientistas – por conta disso, essas células também são chamadas de “células imortais”.
Somente em 1973 que os filhos e o viúvo de Henrietta souberam que as células da mulher, sem qualquer tipo de autorização, estavam fomentando parte da indústria de medicamentos, uma das mais lucrativas do mundo. Desde então, a família busca na justiça uma compensação financeira para a doação involuntária da mãe das células HeLa, em um processo que suscita diversos debates sobre a ética médica e científica.
A história de Henrietta foi contada em “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”, de Rebecca Skloot, livro-reportagem lançado no Brasil pela Companhia das Letras e que já ganhou muitos elogios por aí. O título também serviu de base para o filme homônimo dirigido por George Wolfe e estrelado por Oprah Winfrey.
Uma célula do meu corpo pertence a mim?
A autora descobriu Henrietta ainda na adolescência, quando, em uma aula de biologia, ouviu seu professor falar que as células HeLa foram uma das coisas mais importantes que aconteceram na medicina no último século. Em seguida, após dizer o nome daquela que originara as células, completou com todas as informações biográficas que tinha a respeito da moça: “Era uma mulher negra”. Sim, somente aquilo que havia para ser dito a Rebecca, o que serve de motivação para que a obra também discuta o racismo na trajetória da moça.
“Ao concluir o ensino médio e ingressar na faculdade, onde me formei em biologia, as células HeLa eram onipresentes. Ouvi falar delas em histologia, neurologia, patologia; usei-as em experimentos sobre como células vizinhas se comunicam. Mas, com exceção do sr. Defler [o professor que acabei de citar], ninguém nunca mencionou Henrietta”, escreve a autora do prólogo.
Ao cabo, Rebecca comenta que a atitude dos médicos com Henrietta em 1951 não foi ilegal – e continuava não sendo em 2009, quando a obra foi editada – e conta que boa parte dos norte-americanos tem células arquivadas para pesquisas em algum banco de dados. Essas células são extraídas após atividades rotineiras, como um exame de sangue ou uma extração de dente. “Os cientistas usam essas amostras para desenvolver de tudo, desde vacinas antigripe até produtos para o aumento do pênis. Colocam células em placas de cultura, expondo-as a radiação, remédios, cosméticos, vírus, substâncias químicas caseiras e armas biológicas, e depois estudam suas reações”, escreve, para em seguida imaginar o cenário caso isso não ocorresse: “Os desenvolvedores dos produtos que dependem de materiais biológicos humanos deixariam de ganhar bilhões de dólares”.
A autora também faz um resumo da questão jurídica contemporânea da situação: “Como você deveria se sentir a respeito de tudo isso não é muito claro. Não é como se os cientistas estivessem roubando seu braço ou algum órgão vital. Eles estão usando fragmentos de tecido dos quais você se desfez voluntariamente. Mesmo assim, isso muitas vezes envolve alguém extrair parte de você. As pessoas costumam ter uma forte sensação de propriedade quando se trata de seu corpo, mesmo fragmentos minúsculos dele. Especialmente quando ouvem dizer que alguém pode estar ganhando dinheiro com esses fragmentos ou usando-os para revelar informações potencialmente prejudiciais sobre seus genes e históricos médicos. Mas uma sensação de propriedade não é argumento suficiente num tribunal. E a esta altura nenhuma jurisprudência esclareceu plenamente se você é proprietário de seus tecidos ou tem o direito de controlá-los. Enquanto fazem parte do seu corpo, são claramente seus. Uma vez removidos, seus direitos tornam-se nebulosos.”
“Só quero saber quem foi minha mãe”
Em “A Vida Imortal de Henrietta Lacks” também chama a atenção um depoimento de Deborah, uma das filhas de Henrietta:
“Quando vou ao médico fazer meus check-ups, sempre digo que minha mãe foi HeLa. Eles ficam empolgados, contam coisas do tipo como as células dela ajudaram a produzir meus remédios para hipertensão e antidepressivos e como todas essas coisas importantes na ciência acontecem por causa dela. Mas eles nunca explicam direito, só dizem: Sim, sua mãe esteve na Lua, esteve em bombas nucleares e produziu aquela vacina contra pólio. Eu realmente não sei como ela fez tudo isso, mas acho que estou feliz por isso, porque significa que ela está ajudando um monte de pessoas. Acho que ela ficaria contente com isso.
Mas sempre achei estranho que, se as células da nossa mãe fizeram tanto pela medicina, como é que a família dela nem tem dinheiro pra pagar um médico? Não faz sentido. As pessoas ficaram ricas às custas da minha mãe, e a gente nem sabia que tinham pegado as células dela, e a gente não recebeu um centavo. Antes eu ficava tão furiosa com isso que ficava doente e tinha que tomar remédios. Mas não tenho mais força para lutar. Só quero saber quem foi minha mãe”.
Desde que o livro foi publicado, não houve nenhuma grande mudança em relação às questões que envolvem Henrietta e suas células.
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